terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Wikileaks: o mártir, as velhices e a CIA




O mártir




Não param as notícias nos média: Assange preso, a Suécia quer a extradição, há uma acusação de estupro.Nos blogues e sites independentes é ainda pior: Wikileaks é a última esperança de quem luta contra o Império do Mal, Assange um mártir.

Poucos são os que param e reflectem.Reflectem acerca de quê?


Acerca dum simples pormenor: Julian Assange está vivo.


Talvez para a maioria dos leitores isso possa parecer como um facto normal, mas não é: se Assange fosse verdadeiramente um perigo para os Estados Unidos e, sobretudo, para Israel, estaria debaixo de dois metros de terra. E não desde agora.

Pelo contrário, Assange é vivo e saudável.Por enquanto no Reino Unido, onde Scotland Yard teve a cortesia de esperar antes de prende-lo, depois veremos.

Se os militares ingleses tivessem o mesmo respeito quando foi a altura de capturar os alegados terroristas inimigos do Ocidente, Guantanamo estaria meia vazia.

Mas como é possível duvidar de Wikileaks?

Ao ver Wikileaks e os média em geral que juntam as forças para expor a verdade nua e crua acerca da invasão dos EUA no Iraque, no Afeganistão e, mais recentemente, o que o Departamento de Estado dos EUA pensa acerca dos líderes mundiais? Podemos ter ainda reservas?Quer dizer, isso é o que está a acontecer, certo?Uma série de revelações históricas, não é?

Pois não é.



Velhices



O que acontece é que os média estão a difundir notícias já velhas e incompletas. Só que agora têm uma camada de credibilidade graças ao bom Julian Assange, alto, louro, olhos azuis, um perfeito proto-mártir.

O que verdadeiramente consegue surpreender-me é o facto de sites de notícias alegadamente alternativas estarem a funcionar como um poderos eco para estas mentiras.Difundem a história de Wikileaks sem algum espírito crítico.

Não vamos dizer nomes, não é simpático: mas falamos de sites que a cada dia podem contar com dezenas de milhares de visitantes. Um movimento impressionante para defender o mártir australiano. Tudo sem parar, sem pensar, sem duvidar, sem perguntar.

Toc toc: está ainda alguém por ai?

O leitor tem dúvidas acerca de quanto afirmado?Então o leitor faça um favor: abra YouTube e procure alguma coisa acerca das atrocidades dos Estados Unidos no Iraque ou no Afeganistão.E, uma vez encontrado, olhem para a data de publicação do vídeo. Velhinho, não é?

Pois é.

Os Estados Unidos utilizam esquadras de killer? Olha só a novidade: a notícia tem 7 anos e pode ser encontrada neste link do diário britânico Guardian.Aliás, na notícia original é presente a informação segundo a qual estes killer são treinados pelos Israelitas.

Washington paga os média do Iraque e do Afeganistão para obter notícias mais favoráveis?Wow! Quem poderia ter imaginado uma coisa destas?Talvez o Lincoln Group, que em 2005 ganhou em exclusivo a possibilidade de controlar todos os média do Iraque. Esta revelação é tão perturbadora que está no Wikipedia desde 2005.

Quantos civis foram mortos no Iraque? Milhares? Ohhhhhh...esta sim que é uma revelação aterradora.Querem uma ainda pior? Visitem Just Foreing Policy, que ainda faz as contas: já ultrapassou 1 milhão e 400 mil vítimas. Na verdade, Wikileaks apoia uma estimativa muito baixa que fica mais próxima das avaliações oficiais.

Mas se Assange ficasse por aqui até não seria mal.Afinal é bom lembrar o mal da guerra, os sofrimentos envolvidos, o papel longe de estar limpo das "Forças do Bem", Estados Unidos in primis.

O problema nasce quando Wikileaks avança com outro tipo de "revelações".



A CIA agradece. Israel também.




Wikileaks, por exemplo, fornece as "provas"de que o Paquistão está ajudar os Talibãs.O Paquistão e não a CIA, como muitos suspeitam.

Resultado? O seguinte: o New York Times publica um artigo cujo título é "O serviço de inteligência paquistanês ajuda os revoltosos". E a CIA agradece.

Avança o Guardian: "Wikileaks revela que Irão e Paquistão vendem mísseis aos Talibãs".E a CIA agradece, outra vez. Menos o Irão que vê confirmado o seu papel de mau da fita no Médio Oriente. Tal como Israel predica.

Doutro lado, que Teheran seja um dos principais objectivos destas "revelações" parece evidente. Telegraph: "Wikileaks, como o Irão concebeu um novo colete-suicida para Al-Qaeda no Iraque". O quê? Mas nem nas fantasias mais selvagens de Tel Avive haveria espaço para notícias como estas.

Ainda o Telegraph: "WikiLeaks, o Irão obtém da Coreia do Norte mísseis com os quais atingir Europa". Com certeza. Também Saddam Hussein tinha mísseis assim, lembram?

Guardian: "O especialista da Defesa Adam Holloway afirma que o MI6 [o serviço de intelligence britânico, NDT] obteve a informação directamente dum taxista que tinha ouvido falar dois comandantes militares do Iraque acerca das armas".E não é o caso de sorrir, o nível é o mesmo. Mesmo na altura em que os Estado Unidos estão empenhados na demonização do Irão e têm um porta-aviões no Mar da China, eis que surge Wikileaks com estas estrondosas "revelações". Maravilhoso.

E Israel? Ah, pois, Israel...

Eis o pensamento da terra de Rei David: Em Israel, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, disse que reivindicava as revelações de [Wikileaks, NDT] sobre a extensão das preocupações internacionais e árabes sobre o Irão e o seu programa nuclear.

"Israel não foi danificado de alguma forma pelas publicações de Wikileaks", disse Netanyahu."Os documentos mostram muitas fontes que apoiam as avaliações de Israel, particularmente acerca do Irão. A nossa região tem sido refém duma narrativa que é o resultado de 60 anos de propaganda que pinta Israel como a maior ameaça. Na verdade, os líderes entendem que esta visão é falsa. Pela primeira vez na história, há um consenso de que o Irão é uma ameaça.

"Netanyahu só não disse "Obrigado Julian".Talvez tinha pressa, esqueceu do pormenor. Mas o sentido é o mesmo.Pergunto: mas é preciso dizer mais?

E percebem agora porque Julian Assange está vivo e em boa saúde?



Parabéns



Conclusão: Wikileaks foi uma operação bem pouco sofisticada, mas resultou. E afinal é isso que conta.Por isso é preciso dar os parabéns aos autores. Cujos nomes podem ser intuídos sem grandes esforços cerebrais.

Em breve a poeira irá assentar-se. Os dados acerca dos civis mortos no Iraque serão esquecidos ("é normal, é uma guerra"). E quando alguém afirmar que o Irão é o Reino do Terror, poderá sempre acrescentar "Também Wikileaks disse isso!".E o circulo será fechado.

Sinceramente, pensava que fosse preciso algo mais. Esperava que o 11 de Setembro tivesse ensinado alguma coisa, tivesse difundido o habito de não parar perante as aparências mas de ir um pouco além. No mundo de internet há pessoas que põe em causa tudo ou quase, chegando a imaginar conspirações que envolvem alienígenas, mundos perdidos, Jesús Cristo, os Kennedys e a gripe das aves.

Depois é suficiente um australiano com recortes de jornais para que todos fiquem aniquilados.Tal como disse: esperava que fosse preciso algo mais. Culpa minha, peço desculpa.


Este excelente artigo, escrito com humor sarcástico, foi publicado pelo não menos excelente blogue em língua portuguesa:
http://informacaoincorrecta.blogspot.com/2010/12/wikileaks-toc-toc-esta-alguem.html

Recomendo vivamente que passem por lá, uma parte dos temas abordados são os mesmos aqui desenvolvidos.

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