segunda-feira, 27 de agosto de 2012

RTP: estamos entregues ao Goldman Sachs

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Como sublinha Francisco Louçã, no caso da privatização da RTP, estamos perante "a primeira privatização da história de Portugal, em que a empresa que fica com o que é público não só não paga nada como vai receber".





O “plano” é simples:

- primeiro, encerra-se o segundo canal e tudo o resto que não interessa;

- segundo, entrega-se a um grupo privado a “exploração” por 20 anos do primeiro canal da RTP, entregando-lhes o dinheiro dos contribuintes, espoliados através da factura da electricidade, no valor de 150 milhões de euros a que acrescem as receitas da publicidade, no valor de 50 milhões de euros; 

- terceiro, o grupo privado a quem for entregue a exploração do canal “público” de televisão paga as despesas, neste momento estimadas em 180 milhões de euros, mas ainda fica com rédea solta para as reduzir, despedindo trabalhadores, reduzindo os salários e tudo o mais que lhe vier à cabeça para aumentar o seu lucro.


Ou seja, à partida o lucro seria na ordem dos 15 a 20 milhões de euros – um petisco sem riscos.


Só faltou mesmo António Borges dizer: temos aqui dois ou três amigos interessados em fazer o “negócio”. 


Esta solução para a “privatização” da RTP tem também a particularidade de revelar que o governo não quer aliviar um cêntimo a carga de impostos e as taxas que recaem sobre os portugueses. Qualquer solução para os destinos da RTP que passe pela extinção da taxa cobrada nas facturas da electricidade é, na perspectiva do governo, “dinheiro perdido” que desaparece: não beneficia os amigos, nem entra no Orçamento do Estado.

 Estamos entregues ao Goldman Sachs.





Excerto de um  artigo de opinião de Tomás Vasques, publicado em 27 Ago 2012 no jornal "i"

sábado, 25 de agosto de 2012

O cano de uma pistola pelo cu

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Texto de Juan José Millás




Se percebemos bem – e não é fácil, porque somos um bocado parvos-, a economia financeira está para a economia real como o senhor feudal para o servo, o amo e o escravo, a metrópole para a colónia, o capitalista de Manchester para o operário sobre-explorado.


A economia financeira é o inimigo de classe da economia real, com a qual brinca como um porco ocidental com o corpo de uma criança num bordel asiático. Esse porco filho da puta pode, por exemplo, fazer com que a tua produção de trigo se valorize ou desvalorize dois anos antes a teres semeado.


Na verdade, e sem que tu saibas da operação, pode comprar-te uma colheita inexistente e vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e este a um quinto, e pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que durante esse processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se afunde sem que tu ganhes mais caso suba, apesar de te deixar na merda se descer. Se baixar demasiado, talvez não te compense semear, mas ficarás endividado sem ter que comer ou beber para o resto da tua vida e podes até ser preso ou condenado à forca por isso, dependendo da região geográfica em que estejas – e não há nenhuma segura. É disso que trata a economia financeira.


Estamos a falar, exemplificando, da colheita de um indivíduo, mas o que o porco filho da puta compra geralmente é um país inteiro ao preço da chuva, um país com todos os cidadãos dentro, digamos que com gente real que se levanta realmente às seis da manhã e se deita à meia-noite. Um país que, da perspectiva do terrorista financeiro, não é mais do que um jogo de tabuleiro no qual um conjunto de bonecos Playmobil andam de um lado para o outro como se movem os peões no Jogo da Glória.


A primeira operação do terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do terrorista convencional: o tiro na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o carácter de pessoa, coisifica-a. Uma vez convertida em coisa, pouco importa se tem filhos ou pais, se acordou com febre, se está a divorciar-se ou se não dormiu porque está a preparar-se para uma competição. Nada disso conta para a economia financeira ou para o terrorista económico que acaba de pôr o dedo sobre o mapa, sobre um país, este, vai dar ao mesmo, e diz “compro” ou  diz “vendo” com a impunidade com que se joga Monopólio e se compra ou vendem propriedades imobiliárias a fingir.





Quando o terrorista financeiro compra ou vende converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões de pessoas que antes de irem trabalhar deixaram na creche público, onde estas ainda existem, os filhos, também eles produto de consumo desse exército de cabrões protegidos pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou União Europeia ou, em linguagem simplificada, Alemanha, para cujos cofres estão a ser desviados neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos nossos.


E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro. Você e eu, com o nosso estado febril, os nossos filhos sem creche ou sem trabalho, o nosso pai doente e sem ajudas, com os nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias sentimentais, você e eu já fomos coisificados por Draghi, por Lagarde, por Merkel, já não temos as qualidades humanas que nos tornam dignos da empatia dos nossos semelhantes.


Somos simples mercadoria que pode ser expulsa do lar de idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos algo desprezível, como esse pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia, está prestes a dar um tiro na nuca em nome de Deus ou da pátria.


A você e a mim estão a pôr nos carris do comboio uma bomba diária chamada prémio de risco, por exemplo, ou juros a sete anos, em nome da economia financeira. Avançamos com rupturas diárias, massacres diários, e há autores materiais desses atentados e responsáveis intelectuais dessas acções terroristas que passam impunes entre outras razões porque os terroristas vão a eleições e até ganham, e porque há atrás deles importantes grupos mediáticos que legitimam os movimentos especulativos de que somos vítimas.


A economia financeira, se a estamos a perceber, significa que quem te comprou aquela colheita inexistente era um cabrão com os documentos certos. Terias tu liberdade para não vender? De forma alguma. Tê-la-ia comprado ao teu vizinho ou ao vizinho deste. A actividade principal da economia financeira consiste em alterar o preço das coisas, crime proibido quando acontece em pequena escala, mas encorajado pelas autoridades quando os valores são tamanhos que transbordam dos gráficos.


Aqui se modifica o preço das nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o problema, ou pior, enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo. E, haja Deus, as autoridades empenham-se a fundo para proteger esse filho da puta que lhe vendeu, recorrendo a um esquema legalmente permitido, um produto financeiro, ou seja, um objecto irreal no qual você investiu, na melhor das hipóteses, toda a poupança real da sua vida. Vendeu-lhe fumaça, o grande porco, apoiado pelas leis do Estado que são as leis da economia financeira, já que estão ao seu serviço.


Na economia real para que uma alface nasça há que semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o tempo necessário para se desenvolver. Depois é preciso colhê-la, claro, e embalar e distribuir e facturar a 30, 60 ou 90 dias. Uma quantidade imensa de tempo e de energia para obter uns cêntimos que terás de dividir com o Estado, através dos impostos, para pagar os serviços comuns que agora nos são retirados porque a economia financeira tropeçou e há que tirá-la do buraco.


A economia financeira não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico, precisa também do nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio, passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no cu do sequestrado.
Há já quatro anos que nos metem esse cano pelo cu acima. E com a cumplicidade dos nossos.




Publicado no jornal "El País" a 15 de Agosto 2012.
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