quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O ateísmo no mundo árabe (2ª parte).





O lugar do ateísmo nas várias religiões.



Nas religiões politeístas, dada a profusão de deuses, os ateus são geralmente melhor aceites. O budismo, por muitos considerado uma filosofia e não uma religião, convive bem com o ateísmo. É sobretudo nas religiões monoteístas que a questão da tolerância se coloca.


Na religião judaica, que é uma evolução do politeísmo para o monoteísmo, a cultura religiosa está intimamente ligada ao modo de vida. O judaísmo progressivamente transformou-se de uma identidade religiosa em uma identidade ideológica, por isso o ateu judeu é um mito. Como tal, é a religião monoteísta que mais dificuldade tem em conviver com o ateísmo.


A religião cristã, por seu turno, sempre conviveu mal com o ateísmo. Já vimos que o herege era tido como um ser à parte, que inicialmente foi perseguido e muitas vezes morto. Este foi pouco a pouco aceite, estando apenas condenado à impossibilidade de uma vida par além da morte, o que não preocupa o ateu.


A religião muçulmana considera os ateus assim como os que pertencem a qualquer outra religião, como infíes, estando-lhes reservado sofrimentos atrozes no além. Aceita melhor os monoteístas, judeus e cristãos, dos quais a religião islâmica tem origem, do que os ateus desprovidos de qualquer divindade.






O Islamismo e a liberdade de culto.


Como qualquer religião, o Islão baseia os seus dogmas no equilíbrio entre a sanção e a recompensa assente no temor de Deus. O Corão é uma colectânea de ensinamentos de Maomé, datados do início do século VII, que lhe terão sido ditados por Deus.
Os seus textos são em grande parte sobreponíveis à Torá judaica e ao Antigo Testamento cristão. Tendo sido a última das três religiões monoteísta a chegar, esta tinha que propor algo de novo para ocupar um espaço religioso já bastante preenchido, e em grande parte conseguiu.


A religião judaica, com um culto complexo, destinava-se à pequena minoria de um povo que se auto proclama como os preferidos de Deus. Na religião cristã, o latim era incompreensível para a maioria das populações que a abraçavam. O islamismo tinha as vantagens de ter os seus textos escritos na língua local e de não fazer distinções de raças.


O termo infiel designa todos os não-muçulmanos, sejam eles judeus, cristãos, politeístas ou não crentes.
Contrariamente às ideias preconcebidas ocidentais, o Corão, em numerosos versículos, mostra-se bastante tolerante em relação à outras religiões. Esto vem do facto de considerar que toda a humanidade faz parte de uma única família, sem distinções de cor ou etnia. “Ó homens! Por certo, Nós vos criamos de um varão e de uma vara, e vos fizemos como nações e tribos, para que vos conheçais uns aos outros” (Sura 49, Ayat 13).


A tolerância para com as outras religiões monoteísta, deve-se à unicidade de Deus, os profetas e os mensageiros são os mesmos: “Da religião, Ele legislou, para vós, o que recomendara a Noé, e o que te revelamos, e o que recomendáramos a Abraão e a Moisés e a Jesus: Observai a religião, e dela, não vos separeis” (Sura 42, Ayat 13).


E ainda: “O Mensageiro crê no que foi descido, par ele, do seu Senhor, e, assim também, os crentes. Todos crêem em Allah e em Seus anjos e em Seus Livros e em Seus Mensageiros. E dizem: Não fazemos distensão entre nenhum de Seus Mensageiros” (Sura 2, Ayat 285).
O Corão refere frequentemente a ligação particular que une os muçulmanos, os judeus e os cristãos. Apelida os judeus e os cristão de “povos do Livro”, referindo-se aos povos que acreditam na Torá e na Bíblia.


Mas a sua preferência vai nitidamente para os cristãos, como revela a Sura 5, Ayat 82: “Em verdade, encontrarás,-dentro os homens-, que os judeus e os idólatras são os mais violentos inimigos dos crentes. E, em verdade, encontrarás que os mais próximos aos crentes, em afeição, são os que dizem: Somos cristãos. Isso, porque há dentre eles clérigos e monges, e porque não se ensoberbecem”.


Uma das passagens mais conhecidas e citadas professando a liberdade de culto é a Sura 18 Ayat 29: “ A verdade emana do vosso Senhor. Então, quem quiser que creia, e quem não quiser que renegue a fé”, apesar de perseguir com “Por certo, preparamos para os injustos um Fogo, cujo paredão de labaredas os embarcará. E, se pedirem socorrimento, terão socorrimento de água, como o metal em fusão: escaldar-lhes-á as faces”.




Os não-crentes têm no Corão um destino terrível no além, os que renegam a Fé “terão doloroso castigo”, “Eles desejarão sair do fogo, e dele não sairão. E terão permanente castigo” (Sura 5, Ayat 37). “Aos que renegam a Fé, cortar-se-lhes-ão trajes de fogo. Sobre suas cabeças, entornar-se-á água ebuliente”, “Com ela, derreter-se-á o que há em seus ventres, e, também, as peles”, “E, para eles, haverá recurvados fustes de ferro”, “Cada vez que desejarem sair dele, por angústia, fá-los-ão voltar a ele. E dir-se-lhe-á: Experimentai o castigo da Queima!” (Sura 22, Ayats 19 a 22).


Como podemos constatar, nada de muito agradável. De referir que o Corão não é o único a propor inimagináveis atrocidades aos não crentes, o Cristianismo e sobretudo o Judaísmo também são peritos em castigos sádicos deste tipo.






As intolerâncias no Corão.



A religião islâmica mostrou-se bastante tolerante e inovadora em muitos aspectos. Condena a usura, “Allah extermina a usura e faz crescer as esmolas” (Sura 2, Ayat 276).
Até certo ponto dignifica a mulher, tendo em conta a época, “Elas (as mulheres) são uma roupa para vós e vós serdes uma roupa para elas” (Sura 2, Ayat 187).


O problema é que, como em todas as religiões, sejam elas politeísta ou monoteístas, o homem é considerado superior à mulher. As mulheres são relegadas para segundo plano, não é por acaso que todos os profetas foram homens e nenhuma mulher tem uma função de destaque equivalente ao homem em qualquer dos textos, tem sempre uma posição subalterne.


No Islão, a mulher tem assim um estatuto de inferioridade em relação ao homem. “Allah recomenda-vos, acerca da herança de vossos filhos: ao homem, cota igual à duas mulheres” (Sura 4, Ayat 11), a justificação para esta passagem, é que o homem tem responsabilidades maiores, no que diz respeito as despesas com a casa, a família e os filhos, além do “mahr” que concede às mulheres ao casar-se.


O divórcio é aceite, no Corão, mas o marido, e só ele, pode voltar atrás (Sura 2, Ayat 228): “E que as divorciadas aguardem, elas mesmas, antes de novo casamento, três períodos menstruais, e não lhes é lícito ocultarem o que Allah criou em suas matrizes, se elas crêem em Allah e no Derradeiro Dia. E, nesse ínterim, seus maridos têm prioridade em tê-las de volta, se desejam reconciliação. E elas têm direitos iguais às suas obrigações, convenientemente. E há para os homens um degrau acima delas”.


A mulher tem de estar à disposição do marido: “Vossas mulheres são, para vós, campo lavrado. Então, achegai-vos a vosso campo lavrado, como e quando quiserdes...” (Sura 2, Ayat 223).
E talvez o passagem mais polémica: “Os homens têm autoridade sobre as mulheres,...E àquelas de que temeis a desobediência, exortai-as, pois, e abandonai-as no leito, e batei-lhes...” (Sura 4, Ayat 34)


O tema da mulher no mundo arabe, é bastante polémico quando abordado pelos ocidentais, onda ela goza de maior liberdade e igualdade. Um dos temas mais chocantes é o da lapidação. No Hadith Sahih Muslim (682) podemos ler o seguinte: “O profeta disse: Não lapidem a adultera grávida até que esta tenha dado à luz a sua criança....Depois do nascimento, ela foi levada até um fosso, enterrada até ao peito, e o profeta ordenou a sua lapidação...”
Na realidade existe alguma confusão, porque no Corão, a lapidação não existe. Como é que o Corão se referiria ao facto de chicotear os adultérios, homem ou mulher, e não faria referência à lapidação, se esta fizesse parte das suas intenções?


Em nenhuma passagem do Corão está escrito que os infiéis ou os adúlteros devem ser lapidados. Isto só acontece nos Hadiths que são comunicações orais do profeta Maomé. Representa comparativamente o que o Talmude representa para a Torá no judaísmo.


Alguns muçulmanos têm vindo a denunciar estas interpretações autoritárias do Corão. A lapidação estava em vigor nos povos pré-islâmicos e o Corão nunca preconizou tal acto. Sem ir até ao ponto de considerar que a maioria dos Hadiths sejam falsos, estes foram redigidos conforme as guerras de poder no início da instalação da religião. O próprio profeta terá alertado para a eventualidade de falsificações no Hadiths, dizendo que “quando se depararem com um Hadith, comparem-no com o Corão: se este estiver conforme, tomai-lo; senão rejeitai-lo”.
Numa coisa o Corão é muito claro, mesmo tratando-se dos seus próprios pais, se estes renegarem a fé, passam a ser inimigos: “Ó vós que credes! Não tomeis por aliados a vossos pais e a vossos irmãos, se amam a renegação da Fé mais que a Fé. E quem de vós se alia a eles, esses serão os injustos” (Sura 9, Ayat 23).



Breve visão da história.


A Arabia pré-islâmica era politeísta. Vários cultos estavam presentes e existia uma diferença bastante pronunciada entre os povos nômades do Norte e os sedentários do Sul.


Em Meca, a Kaaba já era um espaço sagrado, provavelmente aí realizava-se o culto ao Sol ; a actual circunvolução dos peregrinos muçulmanos pode ter tido origem nesse facto. Os rituais sagrados estavam a cargo dos chefes de clãs e cada tribu tinha a sua própria divindade.


No sul, pela razão dos povos serem sedentários, os templos eram feitos de pedra , as práticas religiosas eram mais elaboradas e conduzidas por sacerdotes, eram venerados o Sol, a Lua e Vénus.


Desde há vários séculos que as comunidades judaicas estavam instaladas na península arábica, muito antes da chegada do Islão. Localizavam-se sobretudo no actual Iémen, tinham fugido à repressão romana no século II. Muito menos organizadas, viviam algumas comunidades cristãs, eram na sua grande maioria dissidentes da religião cristã oficial, e constituidas por Monofisitas e Nestorianos, considerados hereges. Estas comunidades viviam em segurança mediante o pagamento de um imposto.


O aparecimento do Islão, com a revelação feita a Maomé inscreve-se na continuação de outros profetas como Abraão, Moisés e Jesus. Com base nos textos judeo-cristãos, propõe o fim do politeísmo nesta região geográfica e por conseguinte a veneração de um Deus único, não sem antes passar por uma fase de henoteísmo, isto é a existência de um deus dominante no meio da panóplia de deuses existentes.


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